“Tenho-me esforçado por não rir das ações humanas, por não deplorá-las nem odiá-las, mas por compreendê-las.”
Bento de Espinosa. Filosofo

"rapadura é doce mas, no entanto, não é soft and crispy"

Francisco Bruza Espinosa , Desbravador da Bahia
"Olá Leitores, Muitissimo Boa Noite, Tarde ou Manhã. Vamos dar inicio a nosso teatro de palavras, Motivados pelo nada e patrocinados pelo tudo, inclusive por sua Tia."

Tenham um bom voo

Lucas Et Cetera Proa


Magalomania é um transtorno psicológico no qual o doente tem ilusões de ser Sidney Magal, em carne e osso!

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Cômodo vazio.

“A Primeira foi Elisa e eu nunca esqueci. Fiquei feito bobo, apaixonado, por meses. Dizem que a primeira não se esquece e eu não esqueci, mas não lembro muita coisa. Depois teve a Roberta. A Angela. E venho a faculdade, a partir dai eu perdi a conta. Então fui trabalhar e toda semana tinha uma. Mas sempre tem aquela.”

Um homem entra ansioso em casa. Ele, Médico de trinta e poucos anos, estava chegando do plantão na Zona Sul. Era feriadao no Rio, pagam melhor. É claro, todos os casados querem ficar com a família. Ele vai tirando os sapatos. Um par tira o outro, quase automático. Tem todos seus movimentos calculados para levá-lo em alguns segundos ao completo conforto. A saber, esparramado no sofá, sem camisa com um prato de comida na mão. Em procissão, foi do banheiro a cozinha, da cozinha a sala e da sala de novo a cozinha, voltando então a sala. Tudo com o controle na mão, incessantemente, mudando os canais. A sala à meia luz piscava refletindo as cores da TV. Solteiro convicto, Antunes estava feliz e até empolgado. Nada de novo, apenas apreciando a boa vida livre. Tinha uma enfermeira nova no hospital de botafogo que era uma graça. Vinte e seis anos, bronzeada e o melhor de tudo, era a típica maria-estetoscópio. Marcou um chopp com ela escrevendo algumas sacanagens no prontuario de um paciente que ela acompanhava junto a ele, sairia em algumas horas e provavelmente voltaria já de manhã. Mas ali esticado de frente ao aparelho luminoso parecia ter desligado-se de qualquer pensamento. Sintonizado no completo vazio. A sua saída da rotina também era rotina.

Ele só se deu conta disso quando a TV subitamente desligou.

“Eu aqui sentado olhando pra ela e penso em toda aquela baboseira de o tempo parar. Lembro de como o meu dia foi nada, e de como todos os meus dias tem sido TUDO. Tudo uma grande repetição de nadas. Agora vem ela e estraga toda a fantasia. Descobre a minha mediocridade, com um olhar. Eu permaneço forte, nada me abala. E o tempo para, a meu contragosto. ”

Frustrado na tentativa de religá-la, o homem se sente inquieto. A imposição de ficar sozinho naquele apartamento parecia perturbadora. À sua própria companhia, ele prefere um uísque. O amora era elaborado e a coloração perfeita, 18 anos de repouso. Ainda assim toda a paciência da fermentação se traduzia em rápidos tragos, secos e necessitados. Quase inconscientemente, ele foi atraído a varanda. Levando o copo e a garrafa. Fumava raramente, mas também levou consigo um maço que guardava para emergências, caso alguém morresse ou alguma convidada fizesse questão daquele cigarrinho pós noite. Encostou-se no parapeito junto ao seu kit. A samambaia seca, o banquinho empenado pela maresia e alguns ornamentos de nova era empoeirados marcavam o desuso da varanda. Um comodo esquecido.

“Eu tinha me esquecido. As vezes a vida toma outros ventos. Segue um caminho de encontro a foz de sí mesma, e nadar contra corrente é negar a sí, e isso não é da minha pessoa. Pra mim, é difícil lembrar dela. Desde sei lá quando. Não foi de repente, foi aos poucos, foi nessa varanda. Foi vendo meu passado passar. Era como se a juventude também passasse. Foi ai! E então eu descobri, era ELA.”

Depois de algumas puxadas no cigarro que ele viu. Era a praia de Ipanema em fim-de-por-do-sol carioca e os seus olhos já estavam hipnotizados. Aquela varanda, desejo de muita gente, ele ignorava a sua existência. Mais de ano que ele não abria aquela cortina. Por um segundo se sentiu dono de tudo aquilo. As cores no céu desfilavam uma paleta única. O contraste do tímido raio de sol com os postes de iluminação da praia davam um tom aurifico. Dourado bossa, brilhante como novela das oito. Os cariocas saindo do expediente encostavam o carro pelas ruas do bairro e iam parar em quiosques a beira mar. Uns tomam cerveja, outros jogavam futebol. Dava pra ouvir uma roda de samba que elegantemente tocavam a velha guarda . A Praia ignorava a existência dele.

Ele viu ela.

“E esse homem sou eu, e eu nem me reconheço mais. Faz um tempo que ela tinha sido minha namorada. Devia ter meus 26 anos. Achava que a vida era uma grande aventura. Ela era mais velha. Logo fomos morar juntos. Ela levou o piano herdado do avô para o nosso apartamento. Tocava Cool Jazz e Beatles. Também tinha seus momentos mais joplianos. Era uma aventura pra mim e quando eu me cansei eu fui buscar outra. Eu nem parei pra pensar. Não pensei como eu gostaria daqueles cabelos castanhos descoloridos pelo sol. Do sorriso largo e da gargalhada horrorosa que ela tinha. Ela se vestia sem drama, usava camisetas velhas. Gostava de todas as cores, mas se queria me impressionar usava vermelho. E se queria me impressionar muito usava preto. Sabia quando eu queria falar algo. Queria mudar o mundo, mas tinha preguiça.”

Ele passa os olhos e encontra um rosto conhecido. Ela ainda conservava aquilo. Um brilho, um toque. Parada no semáforo parecia estar ali esperando alguém. Ele? . E como num antigo clichê ela o encara nos olhos. Acena para ele. Ele imaginou que ela acenava para ele. Então ele vai na direção dela. E a abraça. Mas ele não é ele. Aquele é o marido dela. Forte ele se vira de costas para a praia. De fora ele vê um violão próximo ao sofá, ele o busca e se senta no banquinho. Dedilha algumas notas. Contrariado volta-se novamente para a praia, esperando intimamente encontrar ela. Ela não esta mais lá.

O telefone celular toca. Ele olha o número – Era ela.

“Não sei porque, mas por um segundo eu exitei em atender. O aparelho parou de tocar e eu ainda olhava para ele. Ela tinha me visto, ela tinha um carinho por mim. Mas não se pode mudar o passado. Eu errei e o sonho já estava borrado. Mesmo eu querendo falar com ela, não teria coragem. Não queria que ela me visse assim. Bitolado. Não tinha mais aquela vida. Aos 26 queria viajar e montar uma banda, queria viver a vida e queria usar a vida como uma droga. Gastá-la. Desperdiçá-la. Pensava que assim era que se vivia. Hoje eu comparo qual é o melhor seguro-previdência .Melhor pensar que o grande amor foi apenas uma ligação perdida.”

O homem fica um tempo olhando para o celular. Uma nova ligação aparece no visor. Era a enfermeira. Falou algumas palavras no celular. “Já to chegando” ou algo assim. Ele estava atrasado. Colocou uma roupa e quando estava para sair reparou que a TV já estava funcionando há muito tempo. Ele desligou a TV e saiu.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Sobre Gatos e Ratos.

Festa de criança. Aquelas pestes corriam eufóricas, sem rumo. Corriam por correr. Corriam em círculos, corriam do palhaço, corriam atrás do palhaço. corriam para lá e para cá. Uma menina sobe as escadas correndo. Ela corre diferente, determinada. Será que ainda esta lá? Lembrou se da última vez que viu aquela cartola. Era preta, dura, muito bonita. Quando seu pai a mostrou não disse porque a tinha e nem porque a guardava num canto empoeirado, junto a quinquilharias e tranqueiras. Uma cartola tão bonita não deveria ficar largada ao tempo, esquecida. Ela subia os degraus com passos rápidos, num toque-toque incansável. Pulou na escada capenga que levava ao sótão. Em um rangido, abriu a portinhola. Parou por um segundo. Teve um pouco de receio, era um sótão escuro e hostil à primeira vista. Que monstros poderiam morar ali? Lúcia nunca esteve sozinha naquela parte da casa. Mas a menina era de uma curiosidade. Juntou fôlego, prendeu a respiração e entrou.

A iluminação é fraca, vinda da pequena clarabóia. Na penumbra tomavam forma seres de outro mundo. Dinossauros, marcianos e cientistas malucos. Lúcia tentava se concentrar. Com 10 anos não se deve ficar como medo dessas bobeiras, pelo menos era o que seu pai falava. E também já fazia alguns meses que não dormia mais de luz acesa. Desviando, só por precaução, daquelas sombras perigosas, ela se aproxima se esgueirando pelas partes iluminadas do sótão até uma estante. A cartola estava ali. A menina pega o chapéu com uma vontade de possuir aquele mistério. Era sua festa de aniversário, e sua mãe havia contratado um mágico. Lúcia que sempre quis ter um coelho ficou espantada quando viu que dentro da cartola do mágico tinha um coelho. Foi por isso que saiu correndo, ansiosa para entrar no sótão o melhor presente que poderia receber de aniversário. E agora como não um coelho ali? Achou aquilo uma injustiça. Tentou tirar a poeira. Tentou balançar aquela velha cartola de seu pai, imaginando que cairia algo de dentro. Nada. Virou dando tapas no tampo e se algum bendito coelho se agarrando lá dentro, de certo se soutaria. e Nadica de nada. Ou aquele bicho era forte, ou alguma coisa estava errada.

Lúcia pensava demais e quando se pensa tanto assim é como se tivesse uma Lúcia dentro de sua própria cabeça. Parecia que ela era duas Lúcias, uma no sótão e outra dentro da cachola. Estava naquele pequenino sótão, inconformada com aquele grande mistério. Lúcia pensava tanto e as vezes de tanto pensar pensava que respirava e tinha de respirar até que esquece-se que pensava respirar e voltasse a respirar sem pensar. e pensava “Onde estaria o coelho?”. É certo que nas cartolas vivem coelhos, pois acabará de ver um agorinha mesmo. Achou um local limpo para se sentar, perdida em seus pensamentos. Coçava a cabeça tentando tirar dali uma solução. Que sentido teria o sumiço do coelho? E talvez, melhor seria perguntar, qual a razão de se viver dentro de uma cartola? Olhava ao redor, imaginando que talvez o coelho estivesse escondido por ali. O sótão parecia maior e mesmo assim nenhum sinal de leporídeo. Foi quando Lúcia ouviu alguem resmungar:

“Você é uma menina ingenua?” Disse uma sombra que vinha em sua direção. Assustada Lúcia não respondeu. Então a sombra continuou:

“A senhorita deve ser Lúcia, fazia tempo que queria te encontrar. Não me reconheces?”

A sombra saiu por detrás de algumas caixas. Era um gato rajado de belos bigodes. O Bichano veio andando calmamente e parou próximo a Janela. Lambeu uma de suas patas delicadamente e aprumou os bigodes. Esse não era o gato de botas, nem o gato-maluco. Era apenas um gato que vivia no sótão a algum tempo. Lúcia não sabia, mas ela era a sua dona. Aquele gato era a esperteza em pessoa - ou a esperteza da pessoa- . Confiante o bichano sempre dizia a si mesmo "meus bigodes são minha astúcia".

“Não te conheço, gatinho, mas já que está por aqui, poderia me dizer onde está o coelho?” disse Lúcia ao Gato.

“Vejamos menina. Você parece não saber como as coisas funcionam-- não é mesmo?” E sem esperar que ela respondesse, deu um pulo até a clarabóia e continuou: “E deve estar aprendendo a pensar agora. Aprenda a viver Lúcia! me diga você! Viu algum coelho por aqui?” Ela abria a boca para responder, quando o gato disse : “Não é claro. Como é que uma cartola fina e dura pode conter um coelho gordo e fofinho?” O gato parou por um instante e ronronou para a menina, apontando para a sombra que a luz da janela fazia sobre o assoalho próximo a Lúcia.

Com as patas, o gato fez a sombra de um coelho, e então transformou-a numa sombra parecida com uma cartola. Tal a expressão facial da menina ia se fazendo desiludida, tal o gato ia aumentando seu sorriso.

“Não a nada nesse mundo que seja mágico de verdade. O que á mágica senão uma sombra?” “Mas eu juro que vi!” disse ela meio sem acreditar naquilo que tinha visto. O gato riu.

Lúcia sentia se uma boboca. Aquela cartola na sua mão era o grande mistério que carregava. Aquele mistério que todos nos carregamos. Era o mistério da existência. Da existência do coelho. E como era pavoroso um coelho sair da daquilo. Era como o Gato tinha dito. Todos os lados e extremidades da cartola eram finos e um coelho é gordinho. A boba tentou colocar a mão no fundo achando que encontraria as orelhas de um coelhinho branco fofinho. Tentou fazer isso de olhos fechado. Quem sabe a mágica só acontece quando não se vê. Se você tenta descobrir o segredo, o coelho, que é um bichinho arisco, não sai da cartola. Lúcia fingia fechar olhos. Pelos vãos dos seus pequenos dedos procurava um coelho. Queria se apoderar do desconhecido.

Uma desilusão pousou sobre Lúcia. É tudo são sombras, são projeções luminosas. Ela ficou em silêncio angustiada com o que o Gato lhe ensinará, sentia uma estranha “sozinhez”. Parecia que aquele sótão estava lentamente crescendo e ela parecia menor. Foi quando um ratinho passou rápido por entre as pernas da menina e escalou a estante de modo a ficar novamente escondido. O Gato quando viu aquilo tentou agarrar-lo. Lúcia no reflexo segurou o gato pelo rabo. O ratinho espiou desconfiado, ainda duvidando que estava vivo.

“Graças! Graças a você Lúcia. Salvaste minha vida.” com as patinhas tocava em seu próprio corpo. Tinha que sentir a sua pele para assegurar que realmente estava vivo. o roedor pulava de felicidade!

“Sr. Rato, me diga porque se arriscou tanto passando perto de um gato se sabia que gatos adoram comer ratos!?” disse Lúcia.

“ Ouça menina, eu acreditava que você me salvaria. E de tanto acreditar, você me salvou, não?”

“Ora Sr. Rato, não entendo. Como se arrisca assim, sem mais nem menos. E se eu estivesse distraída, você decerto estaria da barriga desse Gato, que é uma esperteza só.”

“Lúcia, nos ratos somos assim. Somos meio cegos, e as vezes nos metemos em confusão. Mas eu posso dizer que ainda assim enxergo muito mais que esse Gato. A esperteza desse Gato é muito pior que minha paixão.”

“Explique-se Sr. Rato.” Disse a menina encucada com esse papo maluco do rato. Como pode ser meio cegueta e enxergar?

“Ouça. Quem disse que só se vê com os olhos. Ver não é tudo, Lúcia. Olhe para essa cartola. Ela parece vazia. E se você só olhar com os olhos nunca verá um coelho. Já se você fechar os olhos. Então poderão sair quantos coelhos quiseres dessa cartola. E se não sairés nenhum coelho, ainda poderá abrir os olhos.”

“Não de ouvidos a esses ratos, Lúcia, como dezenas deles por dia. Todos malucos. Sempre têm a fé que algo os salvará.” Disse o gato se colocando de pé. “Vêem o que não existe. Dizem que a vida é paixão.” O gato volto novamente a clarabóia e fitou os olhos de Lúcia, parecia lhe chamar a consciência : “Lúcia, se o Coelho não está dentro da cartola, há pelo menos um Coelho, que um dia saiu de uma cartola, uma Cartola que existe antes de poder ser habitada por coelhos, e que este Coelho é o mistério da existência ou, como diz o Rato, da paixão humana. Que significa então que o Coelho só exite se existirem cartolas? Significa que o Coelho primeiramente existe, se descobre, surge no mundo; e que só depois entra na cartola. O Coelho, tal como o concebe o Sr. rato, não é existível, é porque primeiramente é nada, e nem se pode vê-lo. E assim a senhorita nunca achará um Coelho. Quer por bem você deseje acreditar nesse Rato maluco, quer por mal prefira ter a consciência mais elevada como a minha. Seria muita presunção ratiana dizer “o Coelho não existe”. Você é estupida e burra.”

“Mas Gato! O Rato disse que eu preciso apenas acreditar. E com você falando assim eu nunca conseguirei acreditar.” A menina se sentiu ofendida pelo gato. Mas só estava com cara de choro porque perdia as esperanças de encontrar o grande mistério do Coelho.

“Lúcia” Disse o rato “Não se importe com isso, acreditando ou não, somos todos marionetes. Seja apenas feliz, e continue procurando os coelhos” Lúcia fez uma careta.

Somos todos marionetes? Como assim? Que sentido teria então a mágica do mágico se somos todos bonecos do mesmo circo?


Foi quando subitamente a menina sentiu que havia cordinhas presas pelo seu corpo. E toda aquela maluquice acontecia dentro de um teatro de marionetes. Indignada ela tentava ver os manipuladores. De um lado tinha um homem bom. Ela sentia isso, ele tinha um sorriso bonito e parecia lhe querer fazer bem, ainda que usasse cordinhas para lhe manipular. Do outro estava um homem mal, tinha uma testa enrugada de tanto franzir-la. Ranzinza aquele homem a tentava manipula-la para vê-la triste. Mas tinha algo estranho. as cordas que saiam da mão do homem Bom vinham do arrogante do Gato. E as cordas do simpático Sr. Rato eram controladas pelo homem Mal. Lúcia viu também que os dois a controlavam.

O sótão estava enorme, e ela se sentia minuscula - do tamanho de uma boneca de cordas- e quanto mais ela pensava mais as paredes do sótão iam se expandindo.

"Ei vocês dois ai em cima! Me digam como o Coelho sai da cartola, se é que existe coelho e cartolas? " Gritou a menina.

O homem bom fingiu não ouvir.

O homem mal olhou para ela e sorriu: “Se quiser que eu lhe tire um coelho da cartola, eu lhe tirarei. Mas o segredo eu nunca lhe contarei!”

Lúcia! Lúcia! Lúcia! Então ouvindo que alguem a chamava parou, por um segundo, de pensar. Sua mãe lhe chamava á porta.

"Lúcia! venha ver o presente que sua tia-avó lhe trouxe"

Foi que ela se lembrou que aquilo era sua festa de aniversário e que sua mãe contratará também um teatrinho de marionetes. E ela estava ali sentada de perninha de índio assistindo ao espetáculo.

E tudo aquilo não passava de uma história, e o grande mistério não passava uma história. As vezes os gatos que são a esperteza, a racionalidade, aparecem nas nossas histórias. E os ratos que são pura fé e maluquice também vivem querendo fazer algo doido nas nossas histórias. E de vez em quando também pode se ouvir um homem Bom dizendo “Não faça isso da sua vida” e um homem Mal dizendo “Faça tudo que quiser da vida, e queria tudo que não puder querer”. Mas no fim tudo não passa de uma historinha dentro da caixola do nosso sótão. E a vida é um espetáculo que nos encenamos para nos mesmos assistirmos. É bom que nunca deixemos os gatos comerem os ratos. Pelo menos não todos os ratos, porque sem ratos o Gato também morre.


Um dia pergunte a Lúcia e ela te responderá as coisas malucas que acontecem nesse sótão.

terça-feira, 13 de abril de 2010

O presunto ( ou a personificação alegórica da estupidez universal)

É torpe o motivo do meu crime. Digo, é banal a razão de minha prisão. Assassinato. Eu sei que falando assim, parece algo um tanto requintado. Assassinos tem moral aqui. “Matou quantos?” perguntam. Edgardo, meu companheiro de cela, sabe a verdade. A verdade de minha mentira. Ele não pode contar para ninguém. Ele é mudo de nascença e idiota por princípios. E caolho pela facada que levou da ex-mulher. Pensão alimentícia, é a desgraça do homem poligâmico. Lhe contei a verdade sobre a mentira numa de nossas intermináveis tarde e manhãs e noites carcerárias, eu e Ed em que tivemos capciosas discussões filosóficas. De metafísica a semântica. Naquela tarde nos empenhávamos em digredir sobre o que seria, o abstrato conceito, “inteligência”, foi que decidi que era bom que eu contasse minha história. Assumir-la, ainda que, em forma de confissão. Eu não acredito que a estupidez seja o oposto da inteligência. Cheguei a provar isso para Edgardo usando dialética e um maço de cigarros. Sabe, eu não posso acreditar. A estupidez é, sim, uma forma variada da inteligência. Um pouco mais burra, é claro. Meu relato, minha vida, é exatamente isso. A eterna dicotomia entre Sapienza e Imbecilidade. Ou bizarrices incoerentes. Poderia então um tijolo ser concretamente inteligente? Sim, na condição sin ne qua non de estar revestido de cimenti-cola.


Meu crime começa com um presente. Devia ter 13 anos quando ganhei do jornaleiro um romance policial. Ele vinha às tardes. Trancava-se no quarto com minha mãe, para discutirem assuntos editoriais. Enquanto meus olhos corriam as letras impressas, meus ouvidos estavam presos à porta do quarto. Ecoavam gritos. Eram de minha mãe. Ele batia nela. Ouvi os violentos estalos de mão contra carne. Minha mente se refugiava da impotência, do medo , naqueles delitos insolucionáveis do livro de ficção. Com as pernas atadas ao chão, incapaz, eu esperava aquilo acabar. Deixando as cenas literárias se misturarem com a angustia. Foi quando ele saiu do quarto, e reparando eu lia desesperadamente disse “ETA MENINO ESPERTO”. Esperto, sim. Senti a inteligência fluir em minha mente me levando a toda forma de realizar aqueles crimes de papel. Lia os nomes dos personagem mas enxergava aquele jornaleiro. Tinha de vingar minha mãe. Nos dias que seguiram, eu colori com imaginação aquelas idéias fictícias de um crime perfeito. Preto, Branco e Escarlate. Pincei, estudei e verifiquei todos os detalhes do crime, cada tique, cada macete subversivo. Um crime Magnifícque! Nunca me descobririam.


Mas minha obra-prima acabou sem uso. No dia seguinte quem começou a freqüentar minha casa foi o leiteiro. Até hoje não tomo leite. Lembro me de minha mãe saindo do quarto com leite por todo seu rosto. Assim foi que nunca realizei meus crimes. E conforme cresci tomei gosto por redigi-los pela madruga, regados a whiskey e embalados por um vitrolinha. Colecionei atentados dos mais maliciosos, audaciosos e pervertidos. Ninguém estava imune a minha máquina de escrever combinada a minha inteligência maquinada. Foram celebridades, sumidades, santidades e confesso até roubei algumas castidades. Solitárias, as letrinhas acalmavam minh’alma. Meu mundo escondido do mundo. Ali era invencível.


Vito Corleone ensinou. Existem aqueles que nascem predispostos, ou predestinados a matar. Eu não nasci para isso. Não sei se a inteligência me impedia de ser imperfeito, ou se medo me paralisava. Sem contar que tenho fobia de sangue. Às vezes acredito que foram as orações de minha mãe. Todo domingo, depois da missa, o padre Salvador Rizolleti vinha em casa rezar com minha mãe no quarto. Eram fervorosas as preces de mamãe. "DEUS DO CÉU" ela suplicava ao Salvador.


Um tempo depois acabei vindo como tantos outros tentar a sorte na capital. Nessa época trabalhava no Motel Oriente. Um emprego medíocre como camareiro noturno, que me dava tempo suficiente para fazer o que eu quisesse. Os dias eram tranqüilos. E as noites passavam como um gemido. Durante o expediente eu me recostava sobre uma cadeira capenga nos fundos da cozinha. A entrada de serviço deixava a luminosidade vermelho e roxa dos néons penetrarem no cubículo. Com a minha prancheta em mãos eu gastava horas desenhando obscenidades e rabiscando ideias para meus crimes. As luzes de fora piscavam, era como e tivesse em um cabaré particular. Era apenas a cozinha mal iluminada de um motel e lâmpadas com mal contato. Sempre dava para ouvir disco music vindo das suítes. As vezes um pouco mais que isso.


Quando me entediava ia até a recepção para sussurrar algumas safadezas para Agatha Cristina. Seu trabalho para alguns poderia parecer penoso. Conferir os RGs dos clientes, e lhes entregar a chave da luxuria. Para ela era puro prazer. Cristie, como gostava de ser chamada, era uma branquela de cabelos tingidos de azul. Tinha algumas dezenas de pircings e tatuagens que harmonizavam com sua silhueta magra, erotizante. Seus lábios eram pálidos e carnudos. Seus olhos penetravam sobre a pele de quem ela encarava profundamente. Rimel preto. Peitos pequenos e rijos. Na maior parte do tempo, eriçados. Ela adorava aquele trabalho. Se exitava imaginando os casais que entravam. Eu a via passar lentamente a língua sobres seus lábios séqüitos. Eu me exitava com ela. Mas a louca dava pra mudar de tara como se muda de calcinha. Dia é bigode e pegou o português da padaria, outro era tecido adiposo, chegou a namorar um lutador de sumo. Noutro gostava de suor e tinha bacanal na construção civil. Vez ou outra eu dava sorte, e era dia de nordestino. Arrastava-me ao minúsculo banheiro de funcionários e pedia para que eu sussurrasse meu nome em seu ouvido. Ribamar Raimundo Ramalho de Jezuis, dizia sensualmente lambendo sua orelha adornada de metais. Mas não era sempre assim, seus repentes aconteciam bem menos do que eu gostaria. Na inconstância a paixão foi crescendo. E Agatha Cristina habitava meus sonhos.


Numa dessas raras farras deixei cair um de meus planos. Agatha ficou maravilhada. Pensou que eu fosse algum tipo de Killer psicopata. Eu não neguei, talvez por vontade de agrada-la, talvez por vontade de que aquilo fosse verdade. A relação entre nos começou a esquentar. Via em seus olhos de pânico o mais intimo desejo vertiginoso. Mas eu fujia dela. Seria me enganar. Eu não merecia sua devoção. Apenas podia nutrir as esperanças dela, não resistia ao ve-la em erupção quando lhe contava uma carnificina. Ela ruborizava.


Decidi que minha hora havia chegado. Era o tempo de me graduar. Os tempos de estudos me davam gabarito suficiente para minha tese de conclusão de curso. Sentia me inteligente, Agatha me fazia sentir assim. Minha cruel inteligência seria testada. E eu já sabia quem seria a vítima. A estupidez.


Sidnaldo, o Gerente, era um gordo apaixonado por gordura. Digo literalmente, e não tinha nada de platônico nisso. Todas as noites ele deixava Cristie tomando conta e ia para a suite presidencial. Não se pode dizer que ele ia sozinho para lá. Estava aconpanhado de quilos de petiscos, entradas, pratos principais. O que era uma peculiaridade começou a tornar-se um estorvo. E eu era obrigado lhe entregar seus alimentos profanos. Bananas, Mamões, Salsichões, Baguetes, Mel e Castanhas, eram os seus parceiros preferidos. O sabor da comilança refletia em meu desgosto em vê lo em trajes sumários, por vezes com rodelas de chantilly sobre seus mamilos. Sim, a Gula é um pecado capital, mas quando misturado a luxúria já é putaria de celebridade. Sidinaldo era um hendonista, e nada tinha de célebre, a não ser sua pança. Há de se celebrar uma circunferência tão perfeita. Decidi que ele era a estupidez quando vi um noticiário sobre a fome na África. Ele devia ser o culpado pela subnutrição infantil. Ele merecia morrer, afinal depois de tanto comer seria justo que os vermes também se empanturrassem.


Olhei em meus arquivos, e achei um plano perfeito. Naquela noite eu carregava uma bandeja com um frango assado. Parei em frente a porta da suite de Sidinaldo. Encostei meu ouvido contra a madeira. "AI que DELICIA, ISSO vai mais! Quero toda a sua DOÇURA Creme Brulé." Estava enojado. Tinha que acabar com aquilo logo. Acabar com minha sina. Com meu medo. E com aquela comilança. Chutei a porta, sabendo que aquele ruido não atrapalharia a perfeição do crime, pelo contrario daria mais estética.


" Você pediu Frango?"


Ele todo lambuzado balançou a cabeça afirmativamente.


" Vai fazer companhia com essa galinha preta no inferno!"


Enfie a mão no recheio de farofa de passas e tirei um Mutchaco.


Calculei errado e precisei de alguns golpes extras para penetrar aquela gorda papada e atingi-lo na aorta. Mas nada que comprometesse a perfeição.


Tive uma longa noite de amor com Cristie. Ela estava perturbadamente adorando aquilo. Eu não estava ali. Eu estava no meu lugar segredo. Quando libertou-se de mim aquela energia, eu senti como se saísse daquela sala. Como se fechasse aquele livro. E desse um soco na cara do jornaleiro. Vejo o dente dele voando. Ele voando. E caindo no aparador, trincado o espelho. Sete pedaços. Meu reflexo estilhaçado.


"NOSSA!" Agatha grita. Ela nunca tinha sentido nada como aquilo.


Acordo com os investigadores, Policia criminal. Holminho é o chefe vasculhou tudo sem tira o cachimbo um vez da boca. O apelido era evidente. Ele é o Segundo idiota. Estúpido. Não acharam nada, não deixei pistas. Passaram alguns dias e os investigadores não voltaram mais. Minha vida estava maravilhosa. Agatha me adorava, pensávamos em viajar juntos. final de semana na montanha. Mas algo me incomodava. Estávamos deitados naquela cama, onde tantos outra já deitaram. Ela dormia em meu ombro enquanto eu olhava para uma pequena rachadura no espelho do teto. Como?


Como tão sublime obra pode permanecer em escondido?. Tamanha perfeição de golpes. Sincronismos, exatismos e arte transformados em sangue sobre uma cama cheia de guloseimas. Usei luva de tecido de kimono e tinha as solas do sapato raspadas, o mutchaco era da academia de Kung -Fu vizinha. As janelas estavam quebradas. O arrombamento da porta podia ser interpretado com uma violência desnecessária de um suposto assassino. um que na mesma noite havia arrombado a academia. Mas o investidagor não deu nenhuma análise.


Nenhuma análise. A sua estupidez não permitiu apreciar os detalhes. Deus está nos detalhes. Apenas colocou na ficha policial como latrocínio. Latrocínio?!


Eu nunca cometeria um latrocínio, é tão popular e baixo. Não existe o menor requinte. O charme. Sou pobre mas tenho orgulho. Além disso, Holminho, aquele imbecil, configurou como roubo seguido de morte porque uma torta de limão havia sumido. Sim eu levei a torta de limão comigo. Estava com um tremenda fome, e convenhamos que aquele gordo conhecia as melhores padarias da região.


Eu não aguentei. Não me contentava mais com os olhos desejosos de Cristie. Queria os holofotes. Tinha que ser reconhecido.


Cheguei na delegacia pela manhã, deixei Agatha dormindo na cama. Deixe a incerteza da paixão pela certeza do juízo, da inteligência e do reconhecimento. Confessei tudo. Me prenderam imediatamente. Ligaram para Agatha. Nos tivemos uma conversa franca. Eu lhe disse "Essa é minha vida!". Eu estava orgulhoso. Ela chorou, e disse que me amava. ELA ME AMAVA.


Eis que o domínio da inteligência foi curto. Me libertaram pela noite. As análises da exumação do corpo comprovaram que Sidinaldo, na verdade, havia morrido engasgado com um ossinho do presunto. Eles chegaram a me elogiar pela tentativa de salva-lo com o mutchaco. Se eu chegasse alguns segundos antes eu teria salvo ele. Me pediram desculpas. Me pediram desculpas pela Bizarrice do presunto. A estupidez é superior estatisticamente a qualquer tentativa humana de impor uma ordem racional no universo. Tentei ligar para Agatha , mas ela se recusava a receber minhas ligações. Uma semana depois os policiais vieram a minha casa me prender pelo arrombamento da academia de Kung-fu. E por roubo de Mutchaco.


sábado, 31 de outubro de 2009

Alice no Pais do lixo

Foi assim. Tinha uma colina, coberta de folhas secas, e o sol das 6 da tarde dava brilho alaranjado a paisagem. No topo da montanhazinha tinha um casebre de madeira violeta, feito com têcnica simples, e tinha uma chaminé esfumaçante. Alice dormia serena ali dentro, abraçada ao seu ursinho Tolunio. Um flamingo vermelho e de penugem áspera, dormia aconchegantemente sobre a cabeça da menina. Uma leve brisa da tarde passa por Alice e lhe roça o nariz, a fazendo espirar. O flamingo acorda assustado e se levanta da cabeça da menina. Ao se verem o flamingo encabulado faz olhar piedoso para Alice tenta se explicar:

-Mile desculpas, senhorita Alice e seu urso Tolúnio, estava andando anoite por essa colina e ao ver sua linda casinha resolvi parar para dormir. E como sua cabeçola, cheia de cabelinhos enroladinho, parecia bem quentinha e confortável, eu cochilei um pouco sobre ela.-

Alice compreendeu, ainda que meio desconfiada, o mal entendido, apesar de não ter gostado que o pássaro a chamasse de cabeçuda, pois ela achava que cabeçuda e cabeçola fossem sinônimos. Mas a menina não estranhou de ver um flamingo falante, e na verdade ela chegou a entranhar por não ter estranhado aquilo. Sem muito pensar convidou-o para brincar no campado do vale laranja, junto com seu ursinho. Animado o bicho, balançando a cabeça, concordou, e até achou interessante pois era hora do café da manhã e ali no vale laranja a diversão era achar as mexericas escondidas em sacos pretos. Na descida do morro eles iam observando o sol, que sorria um sorriso abóbora e aquecia com seu raios cósmicos as almas de todos moradores da colina. Alice olhava admiradamente a aura do espírito do flamingo e via nela coisas que eram comum aos dois, os borrões negros de tristeza e sujeira que davam o tom e um timbre a alma deles. A garota pensou que aquilo faria deles amigos, mas ela não sabia que a igualdade na maldade não aproxima ninguém. Iludida com a visão astral a menina percebeu que o flamingo se esticava com seu longo alranjado pescoço para tentar leh roubar seu urso. Ela bem que tentou impedir que o longo bico do pássaro pegasse seu bichinho de pelúcia, no entanto seus braços fraquinhos não foram suficientes para conter aqueles borrões de maldade que queimavam no peito dos dois. Na briga de puxa-urso-pra-cá-e-puxa-urso-pra-lá os dois tropeçaram e rolaram todo a colina fazendo com que se sujassem com o líquido amarronzado que escorria do solo. Vendo isso alguns ratos cinzas de narizes gordos e piscantes, como sirenes, que rondavam pela região em busca de sujeira resolveram se aproveitar da discórdia e da confusão entre o flamingo e Alice para levarem com eles o ursinho Tolúnio que por causa da briga estava em frangalhos, um olho de plástico o faltava e parte do seu enchimento de espuma fofinha saia por um buraco em sua pele de pelúcia.

Enquanto a menina estrangulava o pescoço do flamingo, observava seu reflexo raivoso pela íris amarela dos olhos desesperados do pássaro, e ali via sua loucura. E era como se passase por ela flashes de luzes douradas em alta velocidade, como no meio de uma avenida. Ela só podia sentir quem ela era naquela momento, e não conseguia ver a sua imagem no passado. Um espelho amarelo de moldura roxa e vermelha, assim era os olhos do flamingo sufocado que estava proximo a morte. Sua memória era parcial, mas quando se lembrou de seu ursinho e viu que lhe haviam roubado, percebeu que o mundo real crescia gradativamente e parte do sonho parecia pesadelo por causa disso. Percebeu que o pássaro que morria em seus braços era um urubu que lutava com ela por comida, e não um flamingo ladrão de ursinhos. A lágrima foi inevitável e o desespero foi desejável, e foi por isso que começou a chover e a trovejar relampagos amarelos. Chovia mas fazia sol, fazendo com que os raios da tempestade se confundissem com os raios do sol. Ao cair da água chuva o urubu que antes era vermelho começou a perder a cor escarlate, que era dada pelo sangue da carniça que estava coagulado sobre seu pêlo, até que ficasse completamente preto. Molhado e sem fôlego de vida o Flamingo-urubu tentou se redimir da vida de mentiras e carniça e falou em forma de confissão a última e epifânica frase à Alice. “Sapateiro Maluco! os ratos levaram seu urso para ele. Os ratos tem o esquema monstruoso”. A menina que chorava prestou atenção na frase e se arrependeu de ter matado o Urubu-flamingo que dividia com ela a mesma maldade da vida e a mesma simpatia pela epifania da morte, motivada pela redenção. Ao leitor sóbrio, o autor se faz entender e tenta, pois é possível que não consiga, explicar a loucura do conto de Alice. A garota chorava sobre o peito do urubu que lhe tentou tirar a vida, mas que por fim foi morto, assim como um condenado que mata o carrasco, Alice matou o urubu e se arrependeu, não só por ter esquecido de Tolúnio, mas também por ter matado aquele que era parte do que ela também era, uma faminta comedora de carniça, além de uma criança sonhadora. E isso tudo aconteceu debaixo de uma chuva dourada e de um sol relampejante de maneira que as gotículas de água formavam um complexo de prismas onde todo raio de luz refletia formando um arco-iris e onde os relâmpagos refletiam formando fractais de luz negra.

Visto isso, continuo a historia. Alice se levanta, suja de liquido marrom, de sangue de carniça e de perfume de flores do campo e mundo torna em tons de verde, uma vez que as nuvens que faziam chover agora estavam cobertas por folhas e bromélias. Ela estava determinada a fazer vingar o suspiro de seu amigo urubu-flamingo, e a achar seu Tolúnio. Mas andando pelo vale conseguiu apenas encontrar o olhinho de plástico que Tolunio perdeu em no meio da briga. Então como em toda história sobre loucura, ela, a loucura, dá as caras e o indeterminado, o imprevisível, acontece. Alice num ato de saudades coloca o olhinho de Tolunio sobre seus olhos. Seus olhos verdes de menina rica travaram e sua visão duplicou de maneira que em cada olho ela tinha uma visão do mundo. Uma Azulada, e outra Amarelada. A azulada era a visão dos olhos de Alice, e a Amarelada era o que o seu ursinho Tolúnio estava enxergando. A azulada era a visão do arco-íris , e a Amarelada era os reflexos da luz negra.

Agora você leitor se detenha nesse ponto e pense comigo como é difícil imaginar as coisas desse mundo de Alice. Olhar com olhos brancos ao mundo multicolor de Alice é como um rei sentado em seu trono ( de sanidade ) observando a estupidez de um bobo-da-corte que não compreendendo a piada, não ri. Mas, por outro lado, para o bobo-da-corte de olhos coloridos, que vive do doce devaneio, o lindo trono de sanidade parece uma terrível prisão, e por isso vive louco e rindo.

O olho era Azul. Um morro de destroços, misturado com restos e com dejetos, junto com um tanto de rejeitos e rejeitados. Ela era um rejeito pois os olhinhos azuis de menina rica contrastavam com a pele marrom de moradora de rua. O nariz coçava e a ansiedade subia como a maré de um mar azul,e alias, antes que o narrador se esqueça, de azul, também subia o nível da água. A chuva era forte e por ali sempre que tinha um temporal, tinha também uma enchente. Mas esse azul não era triste, e na chuva Alice brincava de barquinho de papel. Mas no meio da chuva o ursinho aparece, grande e forte, e tem olhos amarelos. Ela pergunta onde ele está, ela diz que está com saudades, conta sobre seu nariz que coça.
-A avenida das luzes neon. O doce do anil te levará a próxima escala harmônica, e só lá você encontrará o sapateiro maluco. - Disse acenando com o braço.

O olho era amarelo. Um Vale de felicidades. Que definição vaga, não? Explico: Arvores de algodão doce e flores de pirulitos. Ali era quente, e sempre tinha alguem sendo abraçado. Ali você, como o urso, se sentiria amado. Se alguem tivesse uma alma grande poderia inventar qualquer coisa que viraria realidade. Alice inventou que tinha mãe, e que tinha casa. E ali no meio do vale existia aquela mesma casinha roxa, e ali dentro sua mãe fazia o almoço. Muito arroz e feijão. Alice inventou que em cada almoço deveria se comer três pratos, senão era falta de educação. Então o ursinho vê Alice descendo correndo a campina. O ursinho logo imaginou que ela tinha ido para o outro lado, e ele estava certo. A menina descia desesperada, mas por mais que ela corresse não tinha força para imaginar, e por isso nunca chegava ao fim da colina.
-Tolunio eu preciso de você, eu não agüento mais ficar aqui, meu nariz está coçando e minha barriga está vazia.
Então o ursinho grita para a menina, ele se sente culpado em falar aquilo, mas era assim que ela poderia voltar. Venha pela estrada de NEON. Entre na ESCALA HARMONICA DO GRITO.


Ela abre os olhos, e eu estou vendo ela. Nós andamos juntos até aquela avenida, eu ia atrás observando. Você já andou por essas avenidas, você já viu Alice e ela já olhou para você. O céu estava anil estrelado e tinha doce perfume de jasmim no ar. Um perfume barato que vinha de Alice. As luzes passavam rápidas, mas uma delas desacelera, parando próximo a Alice. De dentro dela sai um monstro. Ela tentou fujir, mas ele à segurou delicadamente pelo seu braço, e falou com voz fina. “Você não precisa ter medo, veja eu sou apenas um coitado que nem sequer tenho coração.” A menina parou tentando descobrir se lhe falava a verdade, e realmente o monstro tinha um buraco em seu coração. Um grande vazio. Ele era gordo e grande mas falava com voz de criança. Não sei porque mas aquele monstro demonstrava no olhar e na mão boba uma enorme generosidade. “Menina vejo em seus olhos azuis-esverdeados a inocência que só aqueles que ainda tem um grande coração pode ter, mas não pedirei a sua inocência e sim apenas um pedaço do seu coração para que complete o vazio de meu”. E então eu não sei o que aconteceu, sei apenas que a menina sentiu medo de dar seu coração, mas quando viu que o monstro poderia lhe dar um doce de anil ficou mais calma e chegou a gostar da companhia e da bondade do monstro. Fazia tempo que ninguém a abraçava. Ele fez a menina GRITAR. Seja por grito de dor, ou de pavor, ou de amor, ela tinha que gritar pois sem grito não se pode tirar um pedaço do coração, sem o grito não se atinge a escala harmônica superior. Eu ouvi o grito pois estava no quarto ao lado.

Ah! ( suspiro)

Eu olho pela janela, e o estacionamento está cheio de flores violetas caída das arvores. É um noite escura, que de tão azul, o céu de luar parece roxo. Com meus olhos por entre as persianas eu vejo ela sair do quarto. Ela ainda esta inocente. Ela é uma criança e para as crianças o mundo é mágico, seja como for. O gordo de terno ainda está no quarto. Alguns minutos depois vejo um gordo de terno sair do quarto. Seu rosto é vazio, e seu coração é o buraco que ele tenta preencher. Ele entra no carro, e acerta uma comissão extra com alguns ratos que ficavam por ali.

Os olhos verdadeiros da infância não diferenciam autorama, de sabugo. Nem sonho, de realidade. Ela sai e atravessa a rua, a arvore de ipé roxo é grande o suficiente para que chova pétalas sobre Alice enquanto ela troca o doce de anil pelo seu ursinho em uma sapataria maluca. Alice no começo achou que não fosse o Tolunio, mas quando sentiu o cheirinho do seu amigo teve certeza. Eu tenho certeza que ela agora está no campado, na campina, na sua casinha. Aposto que Tolunio ficou muito feliz quando a viu de novo, eles brincaram de ciranda e voar. Ele convidou ela para que nunca mais o deixa-se. Ela prometeu. Para Alice a vida é viver e não existe inveja nisso, ela é o mais feliz que poderia ser, pois vive dentro de seus sonhos, e ela como mais ninguém de nós, sabe criar mundos fantasiosos. Ela precisa deles, precisa de Tolunio. O mundo real pra ela é um mero pesadelo que de tão forçado e exagerado chega a ser bobo. Sim, Alice vive e é feliz.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Cláu, o palhaço.

Ele sabia.

Foi o que viu nos olhos do garoto..

Foi o que viu no sorriso do palhaço.


-Na frente vai o dono, um russo mal humorado. Depois o picadeiro desmontado, kilos de lona colorida. dai vem os animais, vem a mulher barbada, vem o carro dos anões. E os malabarista vem em um vagão exclusivo. O que não significa muito luxo, 15 polonêses dormem ali. Expremer talvez fosse a expressão correta. E nesse vagão final ficamos eu e o mágico. Dividimos esse vagão dormitório. O que já deu muita confusão. Quantas vezes acordei com um coelho em cima de mim. E as Pombas que adoram durmir dentro dos meus sapatos. -


Ali estava o palhaço Cláu. o Famoso palhaço do circo Dudinka. Sentado na penteadeira do camarim retirando a maquiagem, branca e vermelha, com um pano úmido, molhando o na cumbuca com água e passando sobre o rosto. Então passava de volta na água, turvando-a de cor-de-rosa. No cabideiro estava pendurado a peruca e o colarinho largo. Seu cabelo estava duro e oleoso, como só um artista de massas consegue ficar. Um garoto de uns 14 anos estava atrás dele sentado numa banqueta, olhando com olhos de milagre para seu ídolo. Ouvindo atentamente as histórias do palhaço. O garoto saiu correndo para o camarim logo que o espetáculo terminou.


O garoto estava louco para ver o palhaço. O palhaço estava com saudades do garoto.


Todo ano que o circo passava por ali, ali estaria o garoto.

Teve um ano que o circo não apareceu. E o garoto fez a mãe lhe levar a capital só para ver o palhaço.


-A vida no circo não é engraçada. Aqui parece que está todo mundo rindo. O mundo ri. A lua é sorridente. Em noites de calor os bichinhos de luz ao redor da lâmpada parecem estonteantes de felicidade. O palhaço tem que fazer todos rirem. Mas quando todo mundo ri parece que o sorriso é sempre igual. Um sorriso cinza de obrigação, ele é forçado. A vida te força a viver. E pra viver eu forço o sorriso. O riso não deve vir empacotado, o riso é espontâneo. O verdadeiro riso acontece nas vidas das pessoas, não no circo. Mas muitas pessoas desaprenderam a rir.


Garoto, você é meu fã número 1,sabia?!


Alegria vem, alegria vai. O palhaço vê pelo espelho o garoto. Olhava os traços do rosto e sentia saudades dos dias que ele não estava por perto. Talvez pensasse em como seria a vida se não fosse assim. Jogado pelo mundo, o palhaço encontrava uma nova vida em cada cidade. Mas essa cidade era especial. Por isso mesmo ele nem gostava de ir ali.


Um amor jogado no meio dessa vida de risadas. O amor passa pelas vidas. Há de passar. Pois passou para o palhaço. Passou. Foram as poucas semanas que ficou naquela cidade à uns 15 anos atrás. Um pequeno conto no meio de um romance de estrada.


Quer um nariz de palhaço? Pode ficar! - disse se virando para o garoto.


-Você é meu filho. Desculpa por não ter te visto crescer. - O palhaço pensou em falar isso.


E não falou.


As vezes, mas só as vezes ele para pra pensar como seria se não assim. Nessas horas ele ri para não chorar. Mentira. Ele chora. Mas só as vezes. A vida sem compromissos, sem rumos, sem seguranças, sem lar, é boa. Muito boa alias, nunca se tem rotina, nem chatices da vida. Só não é boa quando você para pra pensar.


Uma garota linda o olhava da platéia, e ele ainda tinha o sorriso da alegria. Durante todo o espetáculo ela não tirou os olhos dele. Ele fazia cambalhotas, e tacava tortas, pomposo, pois sabia que aquela garota estava olhando só para ele. Ele olhava as vezes para platéia, mas só olhava para ela. Não vou dizer que isso nunca lhe havia acontecido, as pessoas do palco sente sempre isso, essa troca de olhares e de sensações. Mas sempre é novo e incrível. É Incrível como todas as outras pessoas desaparecem nesse momento. E o show vira uma apresentação para uma só espectadora. Quando ele chegou ao camarim lá já estava ela.


- Você foi mais rápida que eu. Estava com saudades né?


Ela só o olhou com aquele olhar de adolescente e o puxou pelo braço. O palhaço resistiu ao puxão, porque queria ser puxado. - Aprenda isso, só é puxado aquele que tenta ficar parado- O mundo é muito mais simples nessas horas. Eram os dois ali, o palhaço e a garota da cidade do interior, vivendo suas paixões irreais. As paixões irreais são muito mais importantes na vida de uma mulher que as reais.


Deve ser porque depois que tudo acaba, elas podem se perguntar:


Como seria se não fosse assim?


Naquela noite as risadas não podiam ser contidas, por isso pareciam gargalhadas. Sabe, a paixão é como uma gargalhada, pois é o amor em sua forma incontrolável. Naquela semana ela venho em todas os as apresentações. E foi ao camarim depois de todas elas.


E ele nunca se sentiu tão engraçado, nas graças daquela garota suas falas eram piadas e seus risos eram suspiros. Se engraçavam por toda a noite, e a luz do sol o acordava na cama suada do seu camarim e ela já não estava ali. E durante toda a tarde ele esperava que chegasse a noite. Esperava que o show começasse, pois ali no show o amor também começava.


Mas a vida se reinventa e o palhaço se foi com a comitiva. E teve outros amores. E viveu outras histórias. E a garota que ficou, ficou com saudades mas nem sequer sabia onde o palhaço foi. E foram um mês... e dois. E foram três meses. E a barriga venho. E nas cidades de interior mãe solteira é vagabunda, então se casou com o garoto que era apaixonado por ela.


-Eu estava na maternidade quando você nasceu. Sua mãe me mandou uma carta, eu fingi nunca ter recebido. A gente escolhe um jeito de viver. E queria viver esse amor, mas a comitiva segue e a gente tem que ir.- O palhaço queria se explicar ao garoto, mas achou melhor não.


Ele recebeu a carta que ela falava sobre amor e sobre família. O palhaço pegou um ônibus pra ver seu filho nascer, e chegando na cidadezinha do interior viu uma placa dizendo:


Bem-Vindo a BELO RISO.


Quando chegou no hospital olhou para todos aqueles bebés na maternidade. Sentiu o medo, o verdadeiro medo que é aquele que só quando se quer amar se sente. O medo de amar. - Entenda que no fundo todos os medos vem do amor.- E ele resolveu ir embora, porque só assim o garoto teria um pai de verdade. Um pai presente e não um palhaço qualquer. E pegou o ônibus de volta, e saindo da cidadezinha viu pela janela uma placa pichada que dizia:


Volte sempre com seu AMARELO RISO.


- No circo, garoto, todos torcem contra os equilibristas. As pessoas querem o pior, isso faz elas se sentirem melhores.-


O palhaço Cláu sabia que aquele não era seu filho, e por isso não falou nada. Mas sempre que estava de volta a RISO ele gostava de imaginar como estaria o seu garoto. No fundo ele esperava que o garoto nunca descobrisse que era filho de um palhaço, pois só assim o riso do menino poderia ser verdadeiro. Pois a verdade esta no amor, assim como o sorriso. É por isso que o palhaço sorria sem verdade.


Era tarde e o garoto foi embora.

E quando saia estava usando o nariz do palhaço.

E sorriu com verdade.

Então ele viu que o garoto sabia.


Então o palhaço pensou. Como seria?

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

O Roubo da Rosa

Madeira compensada coberta por fórmica rosa, uma escrivaninha. Sobre ela uma folha de sulfite desenhada a traços infantis com giz de cera colorido, ao lado uma caixa de lápis cheia, todos com ponta quebrada. A Magnum de cano longo, com 3 balas no tambor e uma na agulha, brilhava. A luminária dava parcial tom de amarelo ao quarto escuro. Ele estava sentado, olhando ora para o desenho, ora para a arma. Pensando na morte, dele ou dela ou de sí. Estavam faltando duas balas e a arma estava engatilhada, ele achou que talvez fosse a hora.
Após um berro de angustia, lança o copo de Johnny-on-the-Rocks contra a parede. Na trajetória parte da bebida escapa do copo e vem de encontro ao seu olho. Os estilhaços do vidro caem sobre o carpete, e a bebida escorre pelo papel de parede com motivos de ursinhos. Como num teste psicotécnico, ele enxerga no borrão de álcool dourado a imagem de um coração despedaçado.
Quando não se sabe o que é futuro e o que é passado tudo fica presente. Podia sentir a cena acontecendo novamente. Um filme mental, de Sara tomando um tiro. Foi sem querer, eu juro. Perdoe-me filha, Papai te ama. Papai te ama muito. A cena acontecia de novo ou ainda viria a acontecer?

Ele sou eu, e eu não sei quem sou. Isso foi ontem, hoje eu estou empunhando a arma, dirigindo meu carro indo para casa de Ana. Ana é a mãe de Sara. O ponteiro está marcando mais de 150 e eu vejo vultos de postes de luz passando em forma de reflexos sobre o parabrisas. Com uma mão seguro o volante e com outra uso a ponta da Magnum para mudar as estações de rádio. Soul-music dos anos 60, Aretha Franklin sussurra gritos que acalmam a alma dele. São duas da madrugada e os semáforos vermelhos agora parecem como sugestões. Pare ou será tarde. Manter linha reta era difícil, mas por outro lado fazer curvas derrapando era prazeroso.

-Ana, eu te amo.
-Você não pode me largar assim.
-Eu vou me tratar.
- Isso é só uma fase.
-Você não vai ficar com Sara.
-Minha filha é tudo que eu tenho.
-Te pago o quanto você quiser.

Foi o que disse quando a mulher foi embora de casa, levando sua filha. Minha Filha.

O roubo da Rosa. Não há pecado em retirar uma flor de um jardim. Mas até que ponto a beleza do vermelho delicado, vale os cortes do espinho? Se bem que no fundo tudo é vermelho: a pétala, o sangue, o coração.

As luzes de minha casa estão acesas e eu acabo de chegar do trabalho, estou cansado e quero tomar um whiskey para relaxar. Abro a porta e parece que entro dentro do inferno, Ana vem pra cima de mim gritando. O que os vizinhos vão pensar disso? Eu fecho a porta e tento fugir dos tapas dela. Permaneço quieto e vou de encontro ao destilado, ela está me perseguindo e me batendo. Ana não é real. Porque isso foi ontem. ou vai ser amanhã? Ainda consigo lembrar dos escândalos de Ana e de tudo que a coitadinha da minha princesa era obrigada a ouvir. Os gritos não são de Ana, são meus.

Hoje Ana é casada com um Alcoólatra. Outro alcoólatra, as vezes parecem que as mulheres gostam de insistir no mesmo erro. Só posso ver minha filha nos finais de semana, e hoje é sábado. A mãe dela acabou de chegar pra deixar a menina comigo. Hoje eu e Sara vamos ao parque e vamos tomar sorvete e vamos assistir Bob Esponja juntos. Faz dois anos que eu e Ana nos separamos por incompatibilidades de genes, eu bebia destilados e ela apenas água, para fazer o Vallium descer pela garganta. Eu parei de beber desde então para convencer o juiz a me dar a guarda da Flor. É mentira eu tenho um cantil escondido sob o banco de passagueiros.

Minha rosa tem 8 anos, e não quer que eu de banho nela hoje. Semana passada ela ainda deixava, eu me lembro, eu enchia a banheira e colocava alguns brinquedos para ela, fazia espumar e brincávamos de guerrinha de agua. Ela não acreditou quando eu comprei uma arma. Uma arminha de água para ela e uma para mim. Disse assim

- Agora, Flor, você subirá de patente nessa guerra. Será chamada Capitã Flores e como prêmio receberá sua primeira arma.

Vocês adorariam ter visto o sorriso dela. Ela não acreditou quando me viu com a arma na mão, essa não era a de água. Ela até sorriu no começo, mas quando percebeu que eu gritava com o seu padrasto ela aprendeu que aquela não era uma arma de brincadeirinha.

Depois do parque ela foi tomar banho e não quis brincadeira com água. Disse que já era menina crescidinha e não queria que eu à visse tomando banho. Eu concordei, ela realmente estava ficando grandinha. Na realidade ela ainda era um bebê para mim. Eu lembro dela pequenininha, um botão de rosa, linda demais dos olhos amarelos e do cabelo preto, bem preto. Eu fui meio que a contra-gosto, assistir Tv. Então me lembrei que não tinha toalha para ela se secar. Seria minha desculpa para poder ir até o banheiro, peguei a toalha da Minnie e senti o cheirinho de minha filha.

Guardo até hoje essa toalha, nunca mais a lavei. Mesmo assim, cada dia menos lembro do perfume da rosa.

Eram duas da manhã, e ele estava acordado conversando com Ana. Eles discutiam, sobre Sara. Ele não era eu, até mas parecia. Estava bebado, mas tomava vinho, eu nunca tomo vinho. Só Johnny. Red, vermelho como a rosa. Eu entro na casa e ali não parecia o inferno, era o céu. O céu de Sara. Dei um soco na cara dele, na foto com a cara dele, pendurada na parede como um quadro da família perfeita. A Arma na cintura apertava minha virilha.

-Filho da puta

Ela acordou e me viu com a arma. Era o céu.

Entrei no banho para levar a toalha, e a água era vermelha. Porque você não me contou isso? Ele disse que te matava, te ameaçou. Filho da puta. Nesse dia eu tive medo de deixar Ana pegar minha filha, domingo anoite ela vinha comprir o mandato do juiz. Aquele padrasto sujo era amigo do juiz. Na hora que soltei sua mão para deixa-la ir com a mãe, eu vi seu sorriso amarelo. Pensei se era um sorriso de medo. Mas não sei se o medo era meu ou dela.

Quando você para pra pensar! É melhor deixar ir, hoje, para poder ir, amanhã. Eu deixei ela voltar com Ana para poder comprar a arma, e atirar e matar. Premeditado. Tem um ditado que diz

-A vida é curta.

Eu dei o tiro no Filho-da-puta. Acordar de ressaca no outro dia é a dor que eu quero sentir para poder esconder-me nela. Você não sabe mais quem é você, tudo que a culpa faz é te trazer para o passado. Ontem eu matei. Ele matou, e quem é ele, eu sempre me esqueço. Eu.

Eu xingava ele, estuprador, e Ana gritava. Ela sabe? Não queria que Ana soubesse, eu não queria saber. Sabe como é duro você ter que fazer cara de atencioso com sua filha para que ela conte pra você que foi estrupada. Ela não sabia nem o que era aquilo.

Disparei duas vezes, mas a segunda bala voou da minha mão de aço inoxidável reluzente e um anjo com mãos delicadas conduziu-a à testa da princesa do meu castelo. Ela começou a cair lentamente, escorregando sobre os braços de um querubim. Ele a abraçou e falou para ela algumas palavra no ouvido da criança. A língua dos anjos. Suas asas rasgaram o terno branco e ele a levou.

A rosa ao chegar do outono perde as pétalas. Todas as pétalas voam quando começa a brisa do inverno.

Estava ali mais próximo do céu. As crianças tem lugar garantido sobre as nuvens. Um paraíso de doces onde toda casa tem um parquinho. Eu contava isso quando lhe colocava para dormir. Deus leva primeiro as crianças despedaçadas. Ele também se sente culpado como eu me sinto. Ele colocou ela nessa terra, arrependido de não te-la guardado, segura de tudo. Brincaria com ela todos os dias da eternidade.

No fundo mesmo, eu sei que estou aqui diante do tribunal. Acusado do assassinato, perante o Juiz fazendo a minha defesa. Mas eu não tenho defesa. A insanidade foi a única saída, vocês não querem saber como é matar a própria filha. Eu olhava para os jurados. Alguns dos jurados choravam. Eles me entendiam.

Eu estou na escrivaninha de fórmica rosa e queria sair dali. Os corpos mortos na sala e eu estou sentado no quarto de Sara. Tinha que encontrar minha filha de novo. As luzes da sirene da viatura passavam pela a janela iluminando o papel de parede de cores azul e vermelha. Eu estava com a arma na cabeça. Eu tentei apertar o gatilho. Mas eu tive medo. Merecia penar mais um pouco nessa terra. Era justo assim. Minha arma emperrou. E outra arma se encostou na minha nuca. Parado.

Eu matei o padrasto, um tiro direto no peito dele, e errei o segundo tiro aquele acertou Sara. Eu olho para o Juiz faço uma arma com a mão, miro na testa dele e dou um tiro de mentirinha. Pum! Pum! Faço as onomatopéias cuspindo na cara do Juiz, amigo do padrasto. Foi naquela casa que nos trés morremos. A rosa, o louco e a serpente. Mas Deus tem um lugar no céus para os loucos. Foram os únicos que realmente entenderam o mundo.

Estou na minha escrivaninha. Isso vai acontecer? Ou já aconteceu? Olho para a Magnum. Tem 6 balas no tambor.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Alter-ego da Solidão.

Ei, cachorro, venha aqui! Esta chorando?


Pequeno e maltrapilho cão de que vale a lágrima? Chorar por ai não vai adiantar. Atrasar também não vai. A gota de água salgada, rola e seca sobre seu pêlo marrom, e o mundo continua o mesmo, girando sobre seu eixo na mesma velocidade. 24 horas é o tempo de uma volta, e chorar só muda uma coisa. 1440 minutos de angustia, ou, contados, 86400 segundos de alegria. Oh, pobre canino não fique por essas calçadas imundas desse submundo a vagar. Sente se aqui, sobre o papelão sujo, e fale-me da sua vida de cão.


És um belo cão, não há porquê em lastimar da sorte.

Entendo que teve uma vida sofrida. Todos te chutaram, te difamaram, o chamando de sarnento, e te humilhando jogaram o pão cagado pelo diabo . Hoje, se vê um homem levantar a mão saí correndo, temendo um esporro ou uma pedrada. Não é por menos. Mas um dia você teve família! É mesmo, um dia você teve família, um lar-doce-casinha-de-cachorro. Pais e irmãos lhe davam atenção e afago. Tinha comida e abrigo. Pense a saudade também é um sentimento desejável, pois, no fundo, mede a beleza do passado. Que história interessante, canino,conte-me mais para que eu posso lembrar também da minha própria história. Faz tanto tempo, que nem das agonias da vida eu lembro. Eu não tenho saudades. Ou tenho?


Quer saber sobre mim?

Te conto, te contarei minha vida, das partes que eu assim lembrar, mas antes você deve saber que minha memória é mendicante, assim os relatos podem ser alterados dos verdadeiros. Que seja, contarei como puder e falarei das partes que me coração lembrar! Só te conto para lhe mostrar que não se deve chorar e sim rir, ainda que não se tenha mais dentes para isso. Eu tive família, esposa, não tive filhos porque não quis colocar mais rebentos nesse mundão de ninguém. Fui feliz, sou feliz. O cachorro ambulante que não abana mais o rabo, vivendo de lamurias, eu também teria todos os motivos para chorar. Mas não choro, meu estilo de vida não permite. Não me diga que eu sou um excluído da sociedade, pois assim estaria cometendo injustiça. Eu sou a nata da sociedade.

Como eu assim sujo e largado na rua posso ser a nata da sociedade? Te explico. Você que esta triste , por isso agora talvez você discorde do que te falo, mas se te falo é com toda a sabedoria que só a rua dá aqueles a quem acolhe. A rua me acolheu e me ensinou, e assim devia você também aprender com ela. Em que consiste a vida, hein cachorro em que consiste essa pedaço de luz passageiro? Te digo a vida consiste em viver, e nada mais, pois vivo por isso me alegro. Eu me exclui da sociedade, eu disse não as oportunidades que me deram. Eu escolhi ser mendigo quando minha mulher me chutou de casa, eu, quis, no fundo, que ela me largasse na amargura. Amargura não. E sim, plenitude de viver.


Posso te fazer um carinho?

Vou esfregar sua barriga e talvez você sinta-se mais calmo, e pare de chorar.

Viu?

Sente se melhor?


É assim.

Um dia o homem fui um macaco, que vivia livre pulando de cipó em cipó. Fui ai que o mais espertos dos macacos convenceu os outros a seguirem suas ordens, dessa maneira, os macacos estúpidos poderiam achar comida mais fácil e caçar com mais destreza, usando apenas as orientações do macaco sábio. Para isso o macaco inteligente pedia um pequeno pedaço do arrecadado, e vivia sem trabalhar. Seu trabalho era pensar. Só assim que o homem evoluiu, tutelado pelo macaco sábio. Pois bem, isso foi perdurando durante toda a existência do ser racional humano. Como eu sei tantas palavras? Sim, canino, eu sou estudado. Lhe disse, sou mendigo de opção, e por opção também converso com cachorros de rua como você.

Imagina o que pensariam de mim se me vissem falando com um cachorro?


Eu acredito que todos os homens podem ouvir os animais, temos uma língua comum, o coração, mas há aqueles que não o escutam porque só foram ensinados a ouvir o macaco sábio. Não aprenderam a pensar sozinhos. Agora eis o paradoxo. Eu sou o macaco sábio, vivo sem trabalhar e penso por mim mesmo. Eu como dos restos da sociedade, e por isso eles tentam me excluir, antes disso eu mesmo me exclui.


Cachorro entenda que nada faz sentido.

Não vale o seu choro, o desprezo, porque o desprezo nada mais é do que o aval para seguir seus próprios passos. Seguir o coração. Nossa mente busca causalidade, busca achar o sentido para tudo, mas lhe adianto que não existe sentido na causalidade. Pois veja, o que venho antes do mundo? Alguma coisa diferente, de certo! E antes disso? Outra ainda mais escabrosa. Então, em algum ponto, concorde comigo, não mais poderá se determinar o começo, pois o começo pode ser até mesmo o próprio fim. Se assim, como uma roda gigante galáctica, pode haver algum sentido causal nisso? Não.


Veja que o macaco esperto, aprendeu a inteligencia, e é essa a mesma inteligencia que temos hoje, de serventia, apenas, para controlar os estúpidos. Por isso nossa racionalidade só presta ao mascaramento, a engabelação.


Sua mão te largou, pois você foi um cachorro fujão e desobediente, mas ser fujão e desobediente não é na verdade ser cachorro?


Você é meu alter-ego.

Cachorro, você chora por aquilo que eu gostaria de chorar, não choro porque se chorasse nunca conseguiria ser mendigo. Se me culpasse provavelmente não poderia sequer viver. Mas você guarda dentro do seu peito peludo todas minhas angustias. O que me faz pensar, seria você o próprio cão, o Capeta, a me tentar. Querendo me arrastar a perdição e a danação do desespero? Porque então posso conversar com um maltrapilho de um cão, como se fosse algo normal.


Sei que a rua me enlouqueceu.

Mas a loucura do louco é o convencimento de sua insanidade. E “eles” me convenceram. Sou, por certo, estúpido mas minha estupidez é a de não aceitar a estupidez do mundo.


Se vive a espera do fim,

sob prantos sem fim,

pois, sim, deves rir de mim.


Sou mendigo e converso com cachorros encarnados do Capeta.


Mas se veio aqui para me tentar o Cornudo, suma já!

Tenho comigo toda a proteção divina destinada ao parvos. Sabe Gil Vicente? Só o louco entrou no céu. Nunca chamarás alguém de louco, cachorro! A santíssima bíblia sagrada condena.


Passa! Cão demoníaco, sou mendigo e não chorarei por minhas tristezas, só se é triste quando se tem ao menos comida. Os famintos não são tristes.


Passa.


(O cão afastou-se com medo do mendigo que berrava em plena avenida principal.

Achegando-se a outro morador de rua para tentar roubar um pouco de comida. Novamente o cachorro ouve o aroma alcoólico dizendo:)


- Cachorro chorão. Nuummmm Pode chorar aqui não.

Vem aqui cachorro , vou te contar minha vida.