“Tenho-me esforçado por não rir das ações humanas, por não deplorá-las nem odiá-las, mas por compreendê-las.”
Bento de Espinosa. Filosofo

"rapadura é doce mas, no entanto, não é soft and crispy"

Francisco Bruza Espinosa , Desbravador da Bahia
"Olá Leitores, Muitissimo Boa Noite, Tarde ou Manhã. Vamos dar inicio a nosso teatro de palavras, Motivados pelo nada e patrocinados pelo tudo, inclusive por sua Tia."

Tenham um bom voo

Lucas Et Cetera Proa


Magalomania é um transtorno psicológico no qual o doente tem ilusões de ser Sidney Magal, em carne e osso!

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Cômodo vazio.

“A Primeira foi Elisa e eu nunca esqueci. Fiquei feito bobo, apaixonado, por meses. Dizem que a primeira não se esquece e eu não esqueci, mas não lembro muita coisa. Depois teve a Roberta. A Angela. E venho a faculdade, a partir dai eu perdi a conta. Então fui trabalhar e toda semana tinha uma. Mas sempre tem aquela.”

Um homem entra ansioso em casa. Ele, Médico de trinta e poucos anos, estava chegando do plantão na Zona Sul. Era feriadao no Rio, pagam melhor. É claro, todos os casados querem ficar com a família. Ele vai tirando os sapatos. Um par tira o outro, quase automático. Tem todos seus movimentos calculados para levá-lo em alguns segundos ao completo conforto. A saber, esparramado no sofá, sem camisa com um prato de comida na mão. Em procissão, foi do banheiro a cozinha, da cozinha a sala e da sala de novo a cozinha, voltando então a sala. Tudo com o controle na mão, incessantemente, mudando os canais. A sala à meia luz piscava refletindo as cores da TV. Solteiro convicto, Antunes estava feliz e até empolgado. Nada de novo, apenas apreciando a boa vida livre. Tinha uma enfermeira nova no hospital de botafogo que era uma graça. Vinte e seis anos, bronzeada e o melhor de tudo, era a típica maria-estetoscópio. Marcou um chopp com ela escrevendo algumas sacanagens no prontuario de um paciente que ela acompanhava junto a ele, sairia em algumas horas e provavelmente voltaria já de manhã. Mas ali esticado de frente ao aparelho luminoso parecia ter desligado-se de qualquer pensamento. Sintonizado no completo vazio. A sua saída da rotina também era rotina.

Ele só se deu conta disso quando a TV subitamente desligou.

“Eu aqui sentado olhando pra ela e penso em toda aquela baboseira de o tempo parar. Lembro de como o meu dia foi nada, e de como todos os meus dias tem sido TUDO. Tudo uma grande repetição de nadas. Agora vem ela e estraga toda a fantasia. Descobre a minha mediocridade, com um olhar. Eu permaneço forte, nada me abala. E o tempo para, a meu contragosto. ”

Frustrado na tentativa de religá-la, o homem se sente inquieto. A imposição de ficar sozinho naquele apartamento parecia perturbadora. À sua própria companhia, ele prefere um uísque. O amora era elaborado e a coloração perfeita, 18 anos de repouso. Ainda assim toda a paciência da fermentação se traduzia em rápidos tragos, secos e necessitados. Quase inconscientemente, ele foi atraído a varanda. Levando o copo e a garrafa. Fumava raramente, mas também levou consigo um maço que guardava para emergências, caso alguém morresse ou alguma convidada fizesse questão daquele cigarrinho pós noite. Encostou-se no parapeito junto ao seu kit. A samambaia seca, o banquinho empenado pela maresia e alguns ornamentos de nova era empoeirados marcavam o desuso da varanda. Um comodo esquecido.

“Eu tinha me esquecido. As vezes a vida toma outros ventos. Segue um caminho de encontro a foz de sí mesma, e nadar contra corrente é negar a sí, e isso não é da minha pessoa. Pra mim, é difícil lembrar dela. Desde sei lá quando. Não foi de repente, foi aos poucos, foi nessa varanda. Foi vendo meu passado passar. Era como se a juventude também passasse. Foi ai! E então eu descobri, era ELA.”

Depois de algumas puxadas no cigarro que ele viu. Era a praia de Ipanema em fim-de-por-do-sol carioca e os seus olhos já estavam hipnotizados. Aquela varanda, desejo de muita gente, ele ignorava a sua existência. Mais de ano que ele não abria aquela cortina. Por um segundo se sentiu dono de tudo aquilo. As cores no céu desfilavam uma paleta única. O contraste do tímido raio de sol com os postes de iluminação da praia davam um tom aurifico. Dourado bossa, brilhante como novela das oito. Os cariocas saindo do expediente encostavam o carro pelas ruas do bairro e iam parar em quiosques a beira mar. Uns tomam cerveja, outros jogavam futebol. Dava pra ouvir uma roda de samba que elegantemente tocavam a velha guarda . A Praia ignorava a existência dele.

Ele viu ela.

“E esse homem sou eu, e eu nem me reconheço mais. Faz um tempo que ela tinha sido minha namorada. Devia ter meus 26 anos. Achava que a vida era uma grande aventura. Ela era mais velha. Logo fomos morar juntos. Ela levou o piano herdado do avô para o nosso apartamento. Tocava Cool Jazz e Beatles. Também tinha seus momentos mais joplianos. Era uma aventura pra mim e quando eu me cansei eu fui buscar outra. Eu nem parei pra pensar. Não pensei como eu gostaria daqueles cabelos castanhos descoloridos pelo sol. Do sorriso largo e da gargalhada horrorosa que ela tinha. Ela se vestia sem drama, usava camisetas velhas. Gostava de todas as cores, mas se queria me impressionar usava vermelho. E se queria me impressionar muito usava preto. Sabia quando eu queria falar algo. Queria mudar o mundo, mas tinha preguiça.”

Ele passa os olhos e encontra um rosto conhecido. Ela ainda conservava aquilo. Um brilho, um toque. Parada no semáforo parecia estar ali esperando alguém. Ele? . E como num antigo clichê ela o encara nos olhos. Acena para ele. Ele imaginou que ela acenava para ele. Então ele vai na direção dela. E a abraça. Mas ele não é ele. Aquele é o marido dela. Forte ele se vira de costas para a praia. De fora ele vê um violão próximo ao sofá, ele o busca e se senta no banquinho. Dedilha algumas notas. Contrariado volta-se novamente para a praia, esperando intimamente encontrar ela. Ela não esta mais lá.

O telefone celular toca. Ele olha o número – Era ela.

“Não sei porque, mas por um segundo eu exitei em atender. O aparelho parou de tocar e eu ainda olhava para ele. Ela tinha me visto, ela tinha um carinho por mim. Mas não se pode mudar o passado. Eu errei e o sonho já estava borrado. Mesmo eu querendo falar com ela, não teria coragem. Não queria que ela me visse assim. Bitolado. Não tinha mais aquela vida. Aos 26 queria viajar e montar uma banda, queria viver a vida e queria usar a vida como uma droga. Gastá-la. Desperdiçá-la. Pensava que assim era que se vivia. Hoje eu comparo qual é o melhor seguro-previdência .Melhor pensar que o grande amor foi apenas uma ligação perdida.”

O homem fica um tempo olhando para o celular. Uma nova ligação aparece no visor. Era a enfermeira. Falou algumas palavras no celular. “Já to chegando” ou algo assim. Ele estava atrasado. Colocou uma roupa e quando estava para sair reparou que a TV já estava funcionando há muito tempo. Ele desligou a TV e saiu.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Sobre Gatos e Ratos.

Festa de criança. Aquelas pestes corriam eufóricas, sem rumo. Corriam por correr. Corriam em círculos, corriam do palhaço, corriam atrás do palhaço. corriam para lá e para cá. Uma menina sobe as escadas correndo. Ela corre diferente, determinada. Será que ainda esta lá? Lembrou se da última vez que viu aquela cartola. Era preta, dura, muito bonita. Quando seu pai a mostrou não disse porque a tinha e nem porque a guardava num canto empoeirado, junto a quinquilharias e tranqueiras. Uma cartola tão bonita não deveria ficar largada ao tempo, esquecida. Ela subia os degraus com passos rápidos, num toque-toque incansável. Pulou na escada capenga que levava ao sótão. Em um rangido, abriu a portinhola. Parou por um segundo. Teve um pouco de receio, era um sótão escuro e hostil à primeira vista. Que monstros poderiam morar ali? Lúcia nunca esteve sozinha naquela parte da casa. Mas a menina era de uma curiosidade. Juntou fôlego, prendeu a respiração e entrou.

A iluminação é fraca, vinda da pequena clarabóia. Na penumbra tomavam forma seres de outro mundo. Dinossauros, marcianos e cientistas malucos. Lúcia tentava se concentrar. Com 10 anos não se deve ficar como medo dessas bobeiras, pelo menos era o que seu pai falava. E também já fazia alguns meses que não dormia mais de luz acesa. Desviando, só por precaução, daquelas sombras perigosas, ela se aproxima se esgueirando pelas partes iluminadas do sótão até uma estante. A cartola estava ali. A menina pega o chapéu com uma vontade de possuir aquele mistério. Era sua festa de aniversário, e sua mãe havia contratado um mágico. Lúcia que sempre quis ter um coelho ficou espantada quando viu que dentro da cartola do mágico tinha um coelho. Foi por isso que saiu correndo, ansiosa para entrar no sótão o melhor presente que poderia receber de aniversário. E agora como não um coelho ali? Achou aquilo uma injustiça. Tentou tirar a poeira. Tentou balançar aquela velha cartola de seu pai, imaginando que cairia algo de dentro. Nada. Virou dando tapas no tampo e se algum bendito coelho se agarrando lá dentro, de certo se soutaria. e Nadica de nada. Ou aquele bicho era forte, ou alguma coisa estava errada.

Lúcia pensava demais e quando se pensa tanto assim é como se tivesse uma Lúcia dentro de sua própria cabeça. Parecia que ela era duas Lúcias, uma no sótão e outra dentro da cachola. Estava naquele pequenino sótão, inconformada com aquele grande mistério. Lúcia pensava tanto e as vezes de tanto pensar pensava que respirava e tinha de respirar até que esquece-se que pensava respirar e voltasse a respirar sem pensar. e pensava “Onde estaria o coelho?”. É certo que nas cartolas vivem coelhos, pois acabará de ver um agorinha mesmo. Achou um local limpo para se sentar, perdida em seus pensamentos. Coçava a cabeça tentando tirar dali uma solução. Que sentido teria o sumiço do coelho? E talvez, melhor seria perguntar, qual a razão de se viver dentro de uma cartola? Olhava ao redor, imaginando que talvez o coelho estivesse escondido por ali. O sótão parecia maior e mesmo assim nenhum sinal de leporídeo. Foi quando Lúcia ouviu alguem resmungar:

“Você é uma menina ingenua?” Disse uma sombra que vinha em sua direção. Assustada Lúcia não respondeu. Então a sombra continuou:

“A senhorita deve ser Lúcia, fazia tempo que queria te encontrar. Não me reconheces?”

A sombra saiu por detrás de algumas caixas. Era um gato rajado de belos bigodes. O Bichano veio andando calmamente e parou próximo a Janela. Lambeu uma de suas patas delicadamente e aprumou os bigodes. Esse não era o gato de botas, nem o gato-maluco. Era apenas um gato que vivia no sótão a algum tempo. Lúcia não sabia, mas ela era a sua dona. Aquele gato era a esperteza em pessoa - ou a esperteza da pessoa- . Confiante o bichano sempre dizia a si mesmo "meus bigodes são minha astúcia".

“Não te conheço, gatinho, mas já que está por aqui, poderia me dizer onde está o coelho?” disse Lúcia ao Gato.

“Vejamos menina. Você parece não saber como as coisas funcionam-- não é mesmo?” E sem esperar que ela respondesse, deu um pulo até a clarabóia e continuou: “E deve estar aprendendo a pensar agora. Aprenda a viver Lúcia! me diga você! Viu algum coelho por aqui?” Ela abria a boca para responder, quando o gato disse : “Não é claro. Como é que uma cartola fina e dura pode conter um coelho gordo e fofinho?” O gato parou por um instante e ronronou para a menina, apontando para a sombra que a luz da janela fazia sobre o assoalho próximo a Lúcia.

Com as patas, o gato fez a sombra de um coelho, e então transformou-a numa sombra parecida com uma cartola. Tal a expressão facial da menina ia se fazendo desiludida, tal o gato ia aumentando seu sorriso.

“Não a nada nesse mundo que seja mágico de verdade. O que á mágica senão uma sombra?” “Mas eu juro que vi!” disse ela meio sem acreditar naquilo que tinha visto. O gato riu.

Lúcia sentia se uma boboca. Aquela cartola na sua mão era o grande mistério que carregava. Aquele mistério que todos nos carregamos. Era o mistério da existência. Da existência do coelho. E como era pavoroso um coelho sair da daquilo. Era como o Gato tinha dito. Todos os lados e extremidades da cartola eram finos e um coelho é gordinho. A boba tentou colocar a mão no fundo achando que encontraria as orelhas de um coelhinho branco fofinho. Tentou fazer isso de olhos fechado. Quem sabe a mágica só acontece quando não se vê. Se você tenta descobrir o segredo, o coelho, que é um bichinho arisco, não sai da cartola. Lúcia fingia fechar olhos. Pelos vãos dos seus pequenos dedos procurava um coelho. Queria se apoderar do desconhecido.

Uma desilusão pousou sobre Lúcia. É tudo são sombras, são projeções luminosas. Ela ficou em silêncio angustiada com o que o Gato lhe ensinará, sentia uma estranha “sozinhez”. Parecia que aquele sótão estava lentamente crescendo e ela parecia menor. Foi quando um ratinho passou rápido por entre as pernas da menina e escalou a estante de modo a ficar novamente escondido. O Gato quando viu aquilo tentou agarrar-lo. Lúcia no reflexo segurou o gato pelo rabo. O ratinho espiou desconfiado, ainda duvidando que estava vivo.

“Graças! Graças a você Lúcia. Salvaste minha vida.” com as patinhas tocava em seu próprio corpo. Tinha que sentir a sua pele para assegurar que realmente estava vivo. o roedor pulava de felicidade!

“Sr. Rato, me diga porque se arriscou tanto passando perto de um gato se sabia que gatos adoram comer ratos!?” disse Lúcia.

“ Ouça menina, eu acreditava que você me salvaria. E de tanto acreditar, você me salvou, não?”

“Ora Sr. Rato, não entendo. Como se arrisca assim, sem mais nem menos. E se eu estivesse distraída, você decerto estaria da barriga desse Gato, que é uma esperteza só.”

“Lúcia, nos ratos somos assim. Somos meio cegos, e as vezes nos metemos em confusão. Mas eu posso dizer que ainda assim enxergo muito mais que esse Gato. A esperteza desse Gato é muito pior que minha paixão.”

“Explique-se Sr. Rato.” Disse a menina encucada com esse papo maluco do rato. Como pode ser meio cegueta e enxergar?

“Ouça. Quem disse que só se vê com os olhos. Ver não é tudo, Lúcia. Olhe para essa cartola. Ela parece vazia. E se você só olhar com os olhos nunca verá um coelho. Já se você fechar os olhos. Então poderão sair quantos coelhos quiseres dessa cartola. E se não sairés nenhum coelho, ainda poderá abrir os olhos.”

“Não de ouvidos a esses ratos, Lúcia, como dezenas deles por dia. Todos malucos. Sempre têm a fé que algo os salvará.” Disse o gato se colocando de pé. “Vêem o que não existe. Dizem que a vida é paixão.” O gato volto novamente a clarabóia e fitou os olhos de Lúcia, parecia lhe chamar a consciência : “Lúcia, se o Coelho não está dentro da cartola, há pelo menos um Coelho, que um dia saiu de uma cartola, uma Cartola que existe antes de poder ser habitada por coelhos, e que este Coelho é o mistério da existência ou, como diz o Rato, da paixão humana. Que significa então que o Coelho só exite se existirem cartolas? Significa que o Coelho primeiramente existe, se descobre, surge no mundo; e que só depois entra na cartola. O Coelho, tal como o concebe o Sr. rato, não é existível, é porque primeiramente é nada, e nem se pode vê-lo. E assim a senhorita nunca achará um Coelho. Quer por bem você deseje acreditar nesse Rato maluco, quer por mal prefira ter a consciência mais elevada como a minha. Seria muita presunção ratiana dizer “o Coelho não existe”. Você é estupida e burra.”

“Mas Gato! O Rato disse que eu preciso apenas acreditar. E com você falando assim eu nunca conseguirei acreditar.” A menina se sentiu ofendida pelo gato. Mas só estava com cara de choro porque perdia as esperanças de encontrar o grande mistério do Coelho.

“Lúcia” Disse o rato “Não se importe com isso, acreditando ou não, somos todos marionetes. Seja apenas feliz, e continue procurando os coelhos” Lúcia fez uma careta.

Somos todos marionetes? Como assim? Que sentido teria então a mágica do mágico se somos todos bonecos do mesmo circo?


Foi quando subitamente a menina sentiu que havia cordinhas presas pelo seu corpo. E toda aquela maluquice acontecia dentro de um teatro de marionetes. Indignada ela tentava ver os manipuladores. De um lado tinha um homem bom. Ela sentia isso, ele tinha um sorriso bonito e parecia lhe querer fazer bem, ainda que usasse cordinhas para lhe manipular. Do outro estava um homem mal, tinha uma testa enrugada de tanto franzir-la. Ranzinza aquele homem a tentava manipula-la para vê-la triste. Mas tinha algo estranho. as cordas que saiam da mão do homem Bom vinham do arrogante do Gato. E as cordas do simpático Sr. Rato eram controladas pelo homem Mal. Lúcia viu também que os dois a controlavam.

O sótão estava enorme, e ela se sentia minuscula - do tamanho de uma boneca de cordas- e quanto mais ela pensava mais as paredes do sótão iam se expandindo.

"Ei vocês dois ai em cima! Me digam como o Coelho sai da cartola, se é que existe coelho e cartolas? " Gritou a menina.

O homem bom fingiu não ouvir.

O homem mal olhou para ela e sorriu: “Se quiser que eu lhe tire um coelho da cartola, eu lhe tirarei. Mas o segredo eu nunca lhe contarei!”

Lúcia! Lúcia! Lúcia! Então ouvindo que alguem a chamava parou, por um segundo, de pensar. Sua mãe lhe chamava á porta.

"Lúcia! venha ver o presente que sua tia-avó lhe trouxe"

Foi que ela se lembrou que aquilo era sua festa de aniversário e que sua mãe contratará também um teatrinho de marionetes. E ela estava ali sentada de perninha de índio assistindo ao espetáculo.

E tudo aquilo não passava de uma história, e o grande mistério não passava uma história. As vezes os gatos que são a esperteza, a racionalidade, aparecem nas nossas histórias. E os ratos que são pura fé e maluquice também vivem querendo fazer algo doido nas nossas histórias. E de vez em quando também pode se ouvir um homem Bom dizendo “Não faça isso da sua vida” e um homem Mal dizendo “Faça tudo que quiser da vida, e queria tudo que não puder querer”. Mas no fim tudo não passa de uma historinha dentro da caixola do nosso sótão. E a vida é um espetáculo que nos encenamos para nos mesmos assistirmos. É bom que nunca deixemos os gatos comerem os ratos. Pelo menos não todos os ratos, porque sem ratos o Gato também morre.


Um dia pergunte a Lúcia e ela te responderá as coisas malucas que acontecem nesse sótão.

terça-feira, 13 de abril de 2010

O presunto ( ou a personificação alegórica da estupidez universal)

É torpe o motivo do meu crime. Digo, é banal a razão de minha prisão. Assassinato. Eu sei que falando assim, parece algo um tanto requintado. Assassinos tem moral aqui. “Matou quantos?” perguntam. Edgardo, meu companheiro de cela, sabe a verdade. A verdade de minha mentira. Ele não pode contar para ninguém. Ele é mudo de nascença e idiota por princípios. E caolho pela facada que levou da ex-mulher. Pensão alimentícia, é a desgraça do homem poligâmico. Lhe contei a verdade sobre a mentira numa de nossas intermináveis tarde e manhãs e noites carcerárias, eu e Ed em que tivemos capciosas discussões filosóficas. De metafísica a semântica. Naquela tarde nos empenhávamos em digredir sobre o que seria, o abstrato conceito, “inteligência”, foi que decidi que era bom que eu contasse minha história. Assumir-la, ainda que, em forma de confissão. Eu não acredito que a estupidez seja o oposto da inteligência. Cheguei a provar isso para Edgardo usando dialética e um maço de cigarros. Sabe, eu não posso acreditar. A estupidez é, sim, uma forma variada da inteligência. Um pouco mais burra, é claro. Meu relato, minha vida, é exatamente isso. A eterna dicotomia entre Sapienza e Imbecilidade. Ou bizarrices incoerentes. Poderia então um tijolo ser concretamente inteligente? Sim, na condição sin ne qua non de estar revestido de cimenti-cola.


Meu crime começa com um presente. Devia ter 13 anos quando ganhei do jornaleiro um romance policial. Ele vinha às tardes. Trancava-se no quarto com minha mãe, para discutirem assuntos editoriais. Enquanto meus olhos corriam as letras impressas, meus ouvidos estavam presos à porta do quarto. Ecoavam gritos. Eram de minha mãe. Ele batia nela. Ouvi os violentos estalos de mão contra carne. Minha mente se refugiava da impotência, do medo , naqueles delitos insolucionáveis do livro de ficção. Com as pernas atadas ao chão, incapaz, eu esperava aquilo acabar. Deixando as cenas literárias se misturarem com a angustia. Foi quando ele saiu do quarto, e reparando eu lia desesperadamente disse “ETA MENINO ESPERTO”. Esperto, sim. Senti a inteligência fluir em minha mente me levando a toda forma de realizar aqueles crimes de papel. Lia os nomes dos personagem mas enxergava aquele jornaleiro. Tinha de vingar minha mãe. Nos dias que seguiram, eu colori com imaginação aquelas idéias fictícias de um crime perfeito. Preto, Branco e Escarlate. Pincei, estudei e verifiquei todos os detalhes do crime, cada tique, cada macete subversivo. Um crime Magnifícque! Nunca me descobririam.


Mas minha obra-prima acabou sem uso. No dia seguinte quem começou a freqüentar minha casa foi o leiteiro. Até hoje não tomo leite. Lembro me de minha mãe saindo do quarto com leite por todo seu rosto. Assim foi que nunca realizei meus crimes. E conforme cresci tomei gosto por redigi-los pela madruga, regados a whiskey e embalados por um vitrolinha. Colecionei atentados dos mais maliciosos, audaciosos e pervertidos. Ninguém estava imune a minha máquina de escrever combinada a minha inteligência maquinada. Foram celebridades, sumidades, santidades e confesso até roubei algumas castidades. Solitárias, as letrinhas acalmavam minh’alma. Meu mundo escondido do mundo. Ali era invencível.


Vito Corleone ensinou. Existem aqueles que nascem predispostos, ou predestinados a matar. Eu não nasci para isso. Não sei se a inteligência me impedia de ser imperfeito, ou se medo me paralisava. Sem contar que tenho fobia de sangue. Às vezes acredito que foram as orações de minha mãe. Todo domingo, depois da missa, o padre Salvador Rizolleti vinha em casa rezar com minha mãe no quarto. Eram fervorosas as preces de mamãe. "DEUS DO CÉU" ela suplicava ao Salvador.


Um tempo depois acabei vindo como tantos outros tentar a sorte na capital. Nessa época trabalhava no Motel Oriente. Um emprego medíocre como camareiro noturno, que me dava tempo suficiente para fazer o que eu quisesse. Os dias eram tranqüilos. E as noites passavam como um gemido. Durante o expediente eu me recostava sobre uma cadeira capenga nos fundos da cozinha. A entrada de serviço deixava a luminosidade vermelho e roxa dos néons penetrarem no cubículo. Com a minha prancheta em mãos eu gastava horas desenhando obscenidades e rabiscando ideias para meus crimes. As luzes de fora piscavam, era como e tivesse em um cabaré particular. Era apenas a cozinha mal iluminada de um motel e lâmpadas com mal contato. Sempre dava para ouvir disco music vindo das suítes. As vezes um pouco mais que isso.


Quando me entediava ia até a recepção para sussurrar algumas safadezas para Agatha Cristina. Seu trabalho para alguns poderia parecer penoso. Conferir os RGs dos clientes, e lhes entregar a chave da luxuria. Para ela era puro prazer. Cristie, como gostava de ser chamada, era uma branquela de cabelos tingidos de azul. Tinha algumas dezenas de pircings e tatuagens que harmonizavam com sua silhueta magra, erotizante. Seus lábios eram pálidos e carnudos. Seus olhos penetravam sobre a pele de quem ela encarava profundamente. Rimel preto. Peitos pequenos e rijos. Na maior parte do tempo, eriçados. Ela adorava aquele trabalho. Se exitava imaginando os casais que entravam. Eu a via passar lentamente a língua sobres seus lábios séqüitos. Eu me exitava com ela. Mas a louca dava pra mudar de tara como se muda de calcinha. Dia é bigode e pegou o português da padaria, outro era tecido adiposo, chegou a namorar um lutador de sumo. Noutro gostava de suor e tinha bacanal na construção civil. Vez ou outra eu dava sorte, e era dia de nordestino. Arrastava-me ao minúsculo banheiro de funcionários e pedia para que eu sussurrasse meu nome em seu ouvido. Ribamar Raimundo Ramalho de Jezuis, dizia sensualmente lambendo sua orelha adornada de metais. Mas não era sempre assim, seus repentes aconteciam bem menos do que eu gostaria. Na inconstância a paixão foi crescendo. E Agatha Cristina habitava meus sonhos.


Numa dessas raras farras deixei cair um de meus planos. Agatha ficou maravilhada. Pensou que eu fosse algum tipo de Killer psicopata. Eu não neguei, talvez por vontade de agrada-la, talvez por vontade de que aquilo fosse verdade. A relação entre nos começou a esquentar. Via em seus olhos de pânico o mais intimo desejo vertiginoso. Mas eu fujia dela. Seria me enganar. Eu não merecia sua devoção. Apenas podia nutrir as esperanças dela, não resistia ao ve-la em erupção quando lhe contava uma carnificina. Ela ruborizava.


Decidi que minha hora havia chegado. Era o tempo de me graduar. Os tempos de estudos me davam gabarito suficiente para minha tese de conclusão de curso. Sentia me inteligente, Agatha me fazia sentir assim. Minha cruel inteligência seria testada. E eu já sabia quem seria a vítima. A estupidez.


Sidnaldo, o Gerente, era um gordo apaixonado por gordura. Digo literalmente, e não tinha nada de platônico nisso. Todas as noites ele deixava Cristie tomando conta e ia para a suite presidencial. Não se pode dizer que ele ia sozinho para lá. Estava aconpanhado de quilos de petiscos, entradas, pratos principais. O que era uma peculiaridade começou a tornar-se um estorvo. E eu era obrigado lhe entregar seus alimentos profanos. Bananas, Mamões, Salsichões, Baguetes, Mel e Castanhas, eram os seus parceiros preferidos. O sabor da comilança refletia em meu desgosto em vê lo em trajes sumários, por vezes com rodelas de chantilly sobre seus mamilos. Sim, a Gula é um pecado capital, mas quando misturado a luxúria já é putaria de celebridade. Sidinaldo era um hendonista, e nada tinha de célebre, a não ser sua pança. Há de se celebrar uma circunferência tão perfeita. Decidi que ele era a estupidez quando vi um noticiário sobre a fome na África. Ele devia ser o culpado pela subnutrição infantil. Ele merecia morrer, afinal depois de tanto comer seria justo que os vermes também se empanturrassem.


Olhei em meus arquivos, e achei um plano perfeito. Naquela noite eu carregava uma bandeja com um frango assado. Parei em frente a porta da suite de Sidinaldo. Encostei meu ouvido contra a madeira. "AI que DELICIA, ISSO vai mais! Quero toda a sua DOÇURA Creme Brulé." Estava enojado. Tinha que acabar com aquilo logo. Acabar com minha sina. Com meu medo. E com aquela comilança. Chutei a porta, sabendo que aquele ruido não atrapalharia a perfeição do crime, pelo contrario daria mais estética.


" Você pediu Frango?"


Ele todo lambuzado balançou a cabeça afirmativamente.


" Vai fazer companhia com essa galinha preta no inferno!"


Enfie a mão no recheio de farofa de passas e tirei um Mutchaco.


Calculei errado e precisei de alguns golpes extras para penetrar aquela gorda papada e atingi-lo na aorta. Mas nada que comprometesse a perfeição.


Tive uma longa noite de amor com Cristie. Ela estava perturbadamente adorando aquilo. Eu não estava ali. Eu estava no meu lugar segredo. Quando libertou-se de mim aquela energia, eu senti como se saísse daquela sala. Como se fechasse aquele livro. E desse um soco na cara do jornaleiro. Vejo o dente dele voando. Ele voando. E caindo no aparador, trincado o espelho. Sete pedaços. Meu reflexo estilhaçado.


"NOSSA!" Agatha grita. Ela nunca tinha sentido nada como aquilo.


Acordo com os investigadores, Policia criminal. Holminho é o chefe vasculhou tudo sem tira o cachimbo um vez da boca. O apelido era evidente. Ele é o Segundo idiota. Estúpido. Não acharam nada, não deixei pistas. Passaram alguns dias e os investigadores não voltaram mais. Minha vida estava maravilhosa. Agatha me adorava, pensávamos em viajar juntos. final de semana na montanha. Mas algo me incomodava. Estávamos deitados naquela cama, onde tantos outra já deitaram. Ela dormia em meu ombro enquanto eu olhava para uma pequena rachadura no espelho do teto. Como?


Como tão sublime obra pode permanecer em escondido?. Tamanha perfeição de golpes. Sincronismos, exatismos e arte transformados em sangue sobre uma cama cheia de guloseimas. Usei luva de tecido de kimono e tinha as solas do sapato raspadas, o mutchaco era da academia de Kung -Fu vizinha. As janelas estavam quebradas. O arrombamento da porta podia ser interpretado com uma violência desnecessária de um suposto assassino. um que na mesma noite havia arrombado a academia. Mas o investidagor não deu nenhuma análise.


Nenhuma análise. A sua estupidez não permitiu apreciar os detalhes. Deus está nos detalhes. Apenas colocou na ficha policial como latrocínio. Latrocínio?!


Eu nunca cometeria um latrocínio, é tão popular e baixo. Não existe o menor requinte. O charme. Sou pobre mas tenho orgulho. Além disso, Holminho, aquele imbecil, configurou como roubo seguido de morte porque uma torta de limão havia sumido. Sim eu levei a torta de limão comigo. Estava com um tremenda fome, e convenhamos que aquele gordo conhecia as melhores padarias da região.


Eu não aguentei. Não me contentava mais com os olhos desejosos de Cristie. Queria os holofotes. Tinha que ser reconhecido.


Cheguei na delegacia pela manhã, deixei Agatha dormindo na cama. Deixe a incerteza da paixão pela certeza do juízo, da inteligência e do reconhecimento. Confessei tudo. Me prenderam imediatamente. Ligaram para Agatha. Nos tivemos uma conversa franca. Eu lhe disse "Essa é minha vida!". Eu estava orgulhoso. Ela chorou, e disse que me amava. ELA ME AMAVA.


Eis que o domínio da inteligência foi curto. Me libertaram pela noite. As análises da exumação do corpo comprovaram que Sidinaldo, na verdade, havia morrido engasgado com um ossinho do presunto. Eles chegaram a me elogiar pela tentativa de salva-lo com o mutchaco. Se eu chegasse alguns segundos antes eu teria salvo ele. Me pediram desculpas. Me pediram desculpas pela Bizarrice do presunto. A estupidez é superior estatisticamente a qualquer tentativa humana de impor uma ordem racional no universo. Tentei ligar para Agatha , mas ela se recusava a receber minhas ligações. Uma semana depois os policiais vieram a minha casa me prender pelo arrombamento da academia de Kung-fu. E por roubo de Mutchaco.